A artista do Brasil plural
Sem seguir os estilos consagrados na história da arte, Edméa de Oliveira representa a diversidade da cultura brasileira em suas obras multifacetadas
Com 80 anos, Edméa de Oliveira dedicou 70 deles à arte. É uma artista múltipla: toca piano, escreve poesia, pinta, desenha e esculpe. Nasceu em Jequié, em 1938, e desde os dois anos vive em Vitória da Conquista. Daqui, passou a ser reconhecida no Brasil e no mundo.Sua carreira começou cedo. Aos cinco anos já desenhava no chão do quintal e aos 11 pintou seu primeiro quadro, uma representação da Sagrada Família. Hoje, as obras da artista já foram expostas no Rio de Janeiro, Salvador, Alicante e Madri, ambas na Espanha, e em Havana, em Cuba. Seu sonho é ainda levá-las para a França e Portugal.
Em Conquista, cerca de mil de seus trabalhos estão em exposição permanente no espaço “Edméa de Oliveira – Galeria de Arte e Atelier”, apresentadas em salas divididas a partir de temas como: Amor, Proteção, Primavera e Infância. Logo na primeira sala é possível encontrar retratada a vida embrionária e, no andar superior, quadro das pessoas amadas da artista, como o retrato de seu irmão caçula, Eduardo. Os estilos das obras variam entre as telas à óleo, quadros pintados à bico de pena, esculturas de argila cozida, cerâmicas e também rosas de papel.
Em 2017, ela lançou o projeto “Revelando Talentos”, uma oficina para levar arte e cidadania para os alunos da rede municipal de ensino. Edméa entende a arte na escola como uma forma de desenvolvimento das habilidades dos estudantes nas mais diversas áreas, como a matemática, e como uma forma de autoconhecimento. “A arte não é pedagógica, acadêmica e nem didática. A arte que eu dou nessas oficinas quer apenas ensinar ao menino brasileiro que ele é livre”.
Além de contar sobre o seu trabalho e o seu reconhecimento mundial, Edméa explica o que é a arte e ser uma artista. “A arte é um monte de portas abertas. É andar com o pé no chão e os pensamentos nas nuvens. A arte é tudo e não é nada. ”
Avoador: A partir de quando seu trabalho começou a ser valorizado e reconhecido?
Edméa: Eu comecei a ser notada depois que fui para a Espanha em 1996. Recebi um convite da Casa do Brasil para fazer uma exposição. Uma pessoa muito querida que trabalhava no Museu Regional, Elzir da Costa Vilas Boas, socióloga, junto com Lívia, professora da Uesb que morava lá, me ajudaram. Lívia conhecia meu trabalho e garantiu a procedência e a autenticidade do que eu fazia, sendo autodidata. E o presidente da Casa do Brasil entrou em contato comigo. Eu fiquei por oito meses tramitando documentos, e a Casa do Brasil aceitou que eu fizesse uma exposição num momento tão importante que era aniversário de Madri. Então, era uma jornada de conferências e eventos, e eu fazia parte desse programa sendo a única artista plástica brasileira a expor lá. Isso foi uma porta de todo tamanho. Eu me senti Alice no País das Maravilhas. E os críticos me diziam coisas do tipo: “você sabe o que é o seu trabalho? É isso, é aquilo, é isso, e me comparavam com o Sol de Gauguin, o amarelo de Goya, mas eu dizia: não, meu amarelo é do Brasil.
Avoador: Seus quadros apresentam traços variados, desde pinceladas mais sutis à outras mais fortes e impactantes, tendo temas muito diferentes uns dos outros. Qual sua identidade artística, afinal?
Edméa: Uma arte plural. Eu pinto vários temas, eu não falo que pinto em vários estilos, porque os artistas pintaram em todos os estilos e um dia se ativeram a um só. Mas eu não me atenho. Eu pinto qualquer estilo. Mas as características principais é ser uma obra plural, fazendo jus e sendo coerente com a nossa própria origem brasileira. Sou o tipo de artista que quer contar uma história. Minhas obras carregam uma mensagem. Véus. Cores fortes e vibrantes atenuadas por véus com influência cubista. Mas criei o meu próprio estilo que é o multifacetado. Eu sou uma artista de 80 anos que inova. Se eu quisesse, pintava um tema só, mas acho muito cálculo, você pintar uma coisa só. É muito calculado, é muito comercial, é muito fora do contexto da criação divina. Sabe? E aí, como eu vivo num país tropical e plural, por que eu vou querer ser unidade? Eu fico olhando os clássicos, todos tiveram um nome. Eu não quero ter um nome. Eu não quero ser expressionista, eu não quero ser pontilhista, impressionista, surrealista. Eu não quero ser nada disso. Quero ser uma artista que pintou a época em que ela viveu. Eu não quero ter um rótulo. Eu vivo numa época tão múltipla em termos de costume, de hábitos, de sexo, de tudo. O Brasil é plural. Eu vivo nele. Sou tipicamente brasileira. Eu quero ouvir falar da originalidade do ser artista com a arte que esse artista faz. Eu quero ser conhecida como: ‘a pessoa que pintou o Brasil’. Quero ser Edméa de Oliveira que pintou o Brasil e testemunhou o que o Brasil foi até 2000 e não sei quanto…
“Eu não quero ter um nome. Eu não quero ser expressionista, eu não quero ser pontilhista, impressionista, surrealista. Eu não quero ser nada disso. Quero ser uma artista que pintou a época em que ela viveu”.
Avoador: Como autodidata a senhora acha que a naturalidade e espontaneidade nas artes são mais valorizadas hoje?
Edméa: É. Hoje é muito mais valorizado, em qualquer lugar. Quando eu fui à Espanha, tinha um pouco de receio de falar que era autodidata. Mas foi lá que eu fui muito valorizada por não ter formação acadêmica. Eles se encantaram muito com o processo da criação, essa atividade criativa, e isso deu margem para muitos críticos de arte acharem que eu tinha um dom espiritual, que tinha alguém pegando em minha mão, que era um dom de Deus. Outros não, achavam que era uma coisa pensada, uma coisa que vinha da inteligência, mas eu não me preocupo muito com o que falam. Eu tenho consciência de que essa força parte de mim, da minha inteligência e de Deus. O processo de criação ele é muito bonito na mente da gente. A minha obra toda é uma conexão do mundo interior com o mundo exterior. Por isso, eu pinto todos os temas, eu não vivo no mundo sozinha, eu não vivo em um mundo que é uma coisa só, em um país que é uma coisa só, eu sou gente. Então como é que eu vou criar, que eu vou pintar, um tema? Se eu não vivo um tema na vida. Por que eu acho assim: o artista mesmo, aquele que nasceu artista, eu acho que um poeta não se faz, um cantor não se faz, ele pode aprender, mas a autenticidade é vista naturalmente pelo mundo. Então eu acho que isso deve ser uma coisa sem cálculo. Às vezes, depois que o grupo coloca preço junto comigo, eu fico surpresa. Porque é um grupo técnico, ponderado. Mas eu pinto porque amo pintar, é um amor que está no sangue, na alma, na cabeça está na consciência, está na mão, está no pé.
“A minha obra toda é uma conexão do mundo interior com o mundo exterior. Por isso eu pinto todos os temas, eu não vivo no mundo sozinha, eu não vivo em um mundo que é uma coisa só, em um país que é uma coisa só, eu sou gente”.
Avoador: Mulher, mãe, negra, artista. Você considera ter quebrado paradigmas sociais e artísticos?
Edméa: Sim. Por tudo que minha pintura representa dentro de um contexto de pluralidade. Eu acho que eu incomodo muita gente como mulher negra. Pelo tipo de arte que eu faço, incomoda mais ainda, porque eu estou quebrando esse paradigma de pintar uma coisa só. Eu não gosto desses nomes muito cheios de coisas, não preciso de nenhum rótulo, não gosto. As pessoas podem chamar do quiser. A tendência do mundo é a liberdade de você apenas ser. A tendência do mundo é ser plural.
Avoador: Tem algum artista para o qual a senhora olhe e se emocione? alguém que lhe inspire?
Edméa: Altino Araujo. Ele já faleceu, é baiano, conquistense, foi meu aluno, e ele fez o teto do Conquista Center. Para mim, ele é o resumo e o conjunto de tudo o que a arte pode ser. Posso falar outro? Paulo Vieira. Ele é um artista surrealista. Quando eu vi os quadros dele, um menino que morava na rua que eu morei, o pai era carteiro, a mãe dedicada, percebi que Paulo nasceu artista. O seu trabalho é fino e primoroso. E também gosto de Picasso que criou o cubismo
Avoador: A disciplina de Educação Artística no país não é obrigatória no ensino. O que você pensa sobre isso?
Edméa: [Risos]. Deu vontade de rir. Os alunos não precisam de teoria, não. Eles não precisam ler em livro a vida de fulano que morreu há não sei quanto tempo. Bota esses meninos para fazer a arte deles! Acho que, em primeiro lugar, o nome não tinha que ser Educação Artística. Pense: a pessoa que não tem jeito nenhuma para desenho, vai ter que se educar? Vai ter que ficar com raiva para fazer um desenho que não quer fazer? O nome tinha que ser Arte. Arte é liberdade. O aluno faz o que ele tem tendência, um quer balé, outro quer teatro. Arte é fazer o que tem vontade. A individualidade do cidadão é importante para que ele se encontre e se realize. Mas nem dentro de casa a educação que os pais dão é voltada para desenvolver as habilidades individuais do filho. Os pais dizem uma coisa e todo mundo tem que obedecer, e a individualidade da criança não é levada em conta, nem no Brasil nem na maioria dos países.
“Eles não precisam ler em livro a vida de fulano que morreu há não sei quanto tempo. Bota esses meninos para fazer a arte deles! ”.
Avoador: A senhora já fez projetos sociais que ensinam arte, como o “Revelando Talentos”. Qual foi então o seu principal objetivo com esse projeto?
Edméa: Tenho o objetivo geral e os específicos. A arte é o olho do mundo, a arte transforma e abre portas. Ela socializa, ela dimensiona, abre mente, ela modifica comportamento, e ajuda a pessoa a ter ideias melhores. Pelo tempo de arte que eu tenho, eu enxergo isso pelo que passei e pelo que vi nos meus filhos que são artistas também, dos seis, cinco são artistas. Meu objetivo é fazer com que a arte mostre os caminhos a seguir. Não queremos apenas revelar talentos na arte, mas, sim, fazer com que cada um se encontre enquanto ser humano. Em nenhum momento, disse que eu quero um artista. Esse é o meu pensamento enquanto humanista. Eu estou testemunhando um menino me contar que melhorou, que está mais atencioso, que está com mais facilidade em matemática. Meninos que entravam batendo a porta, depois das aulas e das conversas sobre como estar, como ser, eles pedem licença, pedem abraços. Então, acredito que esses meninos estão se descobrindo por meio da arte. Depois, eles podem ser o que quiserem: cantores, poetas, publicitários, médicos. A arte não é pedagógica, acadêmica e nem didática. A arte que eu dou nessas oficinas quer apenas ensinar ao menino brasileiro que ele é livre.
“A arte que eu dou nessas oficinas quer apenas ensinar ao menino brasileiro que ele é livre”.
Avoador: É uma marca da senhora pintar crianças?
Edméa: Pode ser. Existe uma criança em cada um de nós. A criança que eu não pude ser, a criança que eu fui, a criança que eu lia nos livros. Minha infância me marcou muito pelas dificuldades que a minha família tinha para poder criar a gente, pela minha trajetória de desenho no chão, de pintar o meu primeiro quadro com 11 anos, de ser uma criança muito amada pelos meus pais. Tem isso de amar criança, de ensinar criança, de ser professora há tantos anos, ter seis filhos. Parece que sim, mas eu ainda vou pintar muito [risos]. Mas tem essa coisa muito constante nos meus quadros, figuras humanas com fisionomias muito jovens.
Avoador: Hoje, existem canais no YouTube e perfis no Instagram que tratam de arte. Como a senhora vê essa divulgação da arte nas mídias sociais?
Edméa: Eu acho o máximo! O máximo! Se for uma coisa verdadeira, se não for fake, eu acho que a salvação da gente serão essas mídias. Se não houver deturpação, se não houver mentira, se for uma coisa verdadeira, esse vai ser o caminho. Eu tenho 80 anos e estou seguindo isso e estou achando o máximo. Só não sei fazer nada. Crésio que me ajuda [Crésio Maciel é o assessor pessoal da artista]. Às vezes, eu vejo alguns programas sobre artistas e acho maravilhoso. Estou fazendo a mesma coisa, me colocando nessas mídias também.
Avoador: Por fim, uma discussão que já dura séculos: o que é arte?
Edméa: Para mim, a arte não tem definição, arte é até o dizível e o indizível. As manifestações de arte hoje, no mundo plural, são tão diversificadas que não têm como classificar. Há muito tempo já foi a expressão do belo, a expressão do perfeito, já foi o realismo. Mas, o belo? O que é o belo? Antigamente, eram os reis, as igrejas, os santos revestidos com mantos riquíssimos e encaracolados. Mas isso é tão antigo, é museu mesmo. Serve para gente olhar e achar bonito. Hoje, a arte, para mim, é o olho do mundo, o dizível e até o indizível, porque tem o abstrato: você olha e acha mil coisas, acha aquilo que está dentro de você. Arte é muita coisa, é o encontro do universo interior do artista com o universo exterior. O artista caminha para o mundo que ele quer. A arte é um monte de portas abertas. É andar com o pé no chão e os pensamentos nas nuvens. A arte é tudo e não é nada. Mas, para mim, é principalmente tudo.
Fonte: Aviador.
Fotografia: Tamyres Lenes | Edição: Nanda Feminella