O Brasil é uma das novas frentes da guerra entre Estados Unidos e China para dominar a produção mundial de chips. Nos últimos dois meses, Washington sinalizou várias vezes a integrantes do governo Lula o interesse de promover investimentos na cadeia de semicondutores no Brasil.
Na visita do presidente brasileiro a Joe Biden, no início de fevereiro, a secretária de Comércio americana, Gina Raimondo, levantou o assunto na reunião na Casa Branca. Ela se referiu às oportunidades de investimento nas várias etapas da cadeia de semicondutores que vão surgir com a chamada Lei dos Chips, um pacote de US$ 52 bilhões aprovado pelo Congresso americano para estimular a indústria, reduzir a dependência de países asiáticos e manter o país à frente da China na guerra tecnológica.
No dia 15 de fevereiro, Raimondo telefonou para o vice-presidente Geraldo Alckmin e voltou a falar sobre investimentos na cadeia de semicondutores no Brasil. E na próxima quarta-feira (8) a Representante de Comércio dos EUA, Katherine Tai, vem ao Brasil com uma delegação de empresários que querem investir no país, inclusive na área de semicondutores.
Os semicondutores são minúsculos processadores no centro da tecnologia de celulares, carros autônomos, computação avançada, drones e equipamentos militares. São também o núcleo do conflito tecnológico entre EUA e China. Durante a pandemia, devido às interrupções na cadeia de fornecimento, houve escassez mundial de supercondutores, e diversos países buscam agora reduzir sua dependência de importações e passar a ter fornecedores mais próximos geograficamente (nearshoring).
Além de aprovar o pacote bilionário para incentivar a produção de chips avançados nos EUA, Washington impôs uma série de restrições à exportação de chips, tecnologia e equipamentos para Pequim, com o objetivo de atrasar o desenvolvimento da potência asiática. O país tenta ainda cercar a China globalmente: em janeiro, Holanda e Japão cederam à pressão americana e proibiram a exportação de maquinários de chips para os chineses.
Um eventual investimento dos EUA na cadeia de semicondutores no Brasil viria com várias restrições para exportação ou negócios com a China. Segundo a Lei dos Chips, as empresas que receberem fundos americanos não poderão, no prazo de 10 anos, participar de nenhum negócio envolvendo fabricação ou aumento de capacidade de produção de certos semicondutores na China —excluídos os negócios já existentes, que não poderão ser ampliados.
Essa não seria a única condicionante do investimento. O governo Biden recorre a uma diretriz —a regra do produto estrangeiro direto— que proíbe qualquer indústria que use software, tecnologia ou maquinário americano, em qualquer lugar do mundo, de exportar determinados chips e componentes para a China sem autorização de Washington. O ex-presidente Donald Trump usou a regra para impedir globalmente o fornecimento de componentes para a Huawei, gigante chinês de telecomunicações.
Hoje, o Brasil tem 11 grandes empresas na cadeia de produção de semicondutores, mas com capacidade apenas no chamado backend da cadeia, a finalização –teste, afinamento, corte e encapsulamento dos componentes. O país não atua no frontend, etapa que compreende a fabricação do componente, cuja tecnologia é restrita a poucas nações.
Com investimento e transferência de tecnologia, plantas já instaladas no país poderiam passar a atuar no frontend de semicondutores menos avançados e começar a fabricar, no médio prazo (de 10 a 15 anos), chips de 14 nanômetros para abastecer a indústria automobilística doméstica, segundo avaliação do Ministério do Desenvolvimento (MDIC), chefiado por Alckmin.
O Brasil sente o impacto do déficit global de semicondutores —no mês passado, a Volkswagen anunciou que vai suspender a produção em fábricas no país por falta de componentes. “O Brasil possui todas as condições para receber investimentos na indústria de semicondutores: parque industrial, demanda interna aquecida, mão de obra altamente qualificada e renovará o programa de incentivo”, diz Marcio Elias Rosa, secretário-executivo do MDIC.
Na disputa tecnológica global, a China ainda está atrás de Taiwan, da Coreia do Sul e dos EUA na produção dos chips mais avançados. Apenas Taipé e Seul conseguem fabricar em grande escala os semicondutores de última geração, com processo mais moderno que 7 nanômetros, essenciais para o desenvolvimento de inteligência artificial, carros autônomos e certos armamentos. Pequim, embora seja grande exportadora de chips mais simples, ainda depende de importações para os mais avançados e, por isso, critica a escalada protecionista americana e investe para suprir o déficit domesticamente.
O Brasil, além de iniciar a médio prazo a produção de chips menos avançados para o mercado interno, poderia se beneficiar da estratégia de nearshoring dos EUA. Mais de 60% das indústrias de semicondutores americanas têm a etapa da fabricação dos chips baseada em outros países, principalmente asiáticos. A etapa da finalização também está, em grande parte, no exterior.
Washington quer transferir a produção desses países asiáticos, que são mais distantes geograficamente e poderiam ser mais vulneráveis a pressões da China, para México, Costa Rica, Brasil e outros países do hemisfério ocidental.
“O Brasil não tem condições de ser um player mundial, mas ele pode ocupar elos da cadeia mundial de suprimentos com parcerias”, diz Uallace Moreira, secretário de Desenvolvimento Industrial do MDIC.
A ofensiva americana no Brasil, por óbvio, incomoda Pequim. O regime chinês tem dito que preparará uma recepção histórica para o presidente Lula, que visita o país no final de março. Como parte do pacote de recepção de honra, chineses devem acenar com possibilidade de investimentos e transferência de tecnologia para fábricas de semicondutores no Brasil, com produção voltada para o mercado brasileiro.
Uma ideia seria investir na Ceitec (Centro de Excelência em Eletrônica Avançada), a estatal de semicondutores que entrou em processo de liquidação sob Jair Bolsonaro e que Lula avalia reabrir. Pequim usa uma linguagem que soa como música aos ouvidos petistas —a importância de o Brasil, assim como outros países, ter uma indústria doméstica de chips para garantir sua segurança nacional.
Para os EUA, o nearshoring é estratégico para se manter na dianteira da disputa tecnológica com a China. Em visita ao México em janeiro, Biden falou sobre a importância de investir e integrar a cadeia de semicondutores na região. “Estamos no processo de fortalecer nossas cadeias de fornecimento, para que nem uma pandemia na Ásia nem ninguém possa nos impedir de ter acesso aos elementos essenciais que precisamos para produzir tudo”.
Questionado sobre o interesse dos EUA em investimentos na cadeia de semicondutores no Brasil, Tobias Bradford, porta-voz da embaixada americana em Brasília, enviou nota. “Os presidentes Biden e Lula aproveitam novas oportunidades para impulsionar o comércio e o investimento, bem como ajudar a garantir e expandir as cadeias de abastecimento no hemisfério. A relação econômica Brasil-EUA oferece uma base ideal para explorar essas oportunidades em todos os setores, incluindo semicondutores, nearshoring, energia limpa e muitos outros”.
Na visão do governo brasileiro, que não se inclina para nenhum dos dois lados nessa Guerra Fria tecnológica, interessa manter as duas superpotências em competição.Patrícia Campos Mello/Folhapress