Algumas histórias podem influenciar acontecimentos políticos, outras podem parecer atuais muito após sua criação. Poucas podem oferecer uma visão única sobre a natureza humana.
Um homem conversando com uma caveira. Um monólogo sobre suicídio na porosa fronteira entre sanidade e loucura. Uma menina se afoga em um riacho, em luto pelo seu pai. Se David Lynch tivesse feito a série Twin Peaks 400 anos atrás, ele poderia ter criado algo parecido. Mas esse foi William Shakespeare. Em 1596, seu filho Hamnet morreu com 11 anos de idade – 5 anos depois, enquanto o dramaturgo terminava sua tragédia Hamlet, seu pai ficou doente. Ele morreu em setembro de 1601.
“Algo deve ter acontecido com Shakespeare, algo poderoso o bastante para causar essa explosão linguística”, escreve Stephen Greenblatt, professor de Harvard. “Como plateias e leitores entenderam há tempos, no centro da tragédia de Shakespeare estão um luto passional provocado pela morte de alguém amado”. A morte de seu filho e a pendente morte de seu pai “poderiam ter causado uma perturbação psíquica que ajuda a explicar o poder explosivo e a interiorização de Hamlet”. O que é reverenciado como uma das melhores obras da literatura possivelmente veio de um sofrimento emocional muito intenso.
Montagem de ‘Hamlet’ de Shakespeare é apresentada no Teatro Jorge Amado em Salvador. A peça possivelmente surgiu a partir de um sofrimento emocional muito intenso — Foto: Divulgação/Assessoria
As circunstâncias em que Hamlet foi criada podem ajudar a explicar por que a tragédia continua influente nos dias de hoje em todas as partes do mundo. A peça ficou em oitavo lugar na votação Histórias que Mudaram o Mundo, da BBC Culture, com participantes elogiando seu extraordinário olhar sobre a condição humana. Hamlet “é a peça que exemplifica o profundo entendimento de Shakespeare sobre a psiquê humana com suas nuances e extremidades…. Nossa mistura simultânea de genialidade e autossabotagem, nossa capacidade para amar e odiar, criatividade e destruição”, diz a poeta, novelista e crítica Elizabeth Rosner. Segundo o escritor e crítico britânico Adam Thorpe, é uma história que “influenciou a forma como pensamos sobre nossos egos embaralhados. Entramos no núcleo central de Hamlet e saimos despidos de ilusão”. Hamlet revela o quanto as histórias podem nos ensinar sobre nós mesmos.
Como disse certa vez o filósofo Noam Chomsky, “nós sempre vamos aprender mais sobre a vida humana e sobre personalidades a partir dos romances do que pela psicologia científica” – algo que o escritor e crítico David Lodge explorou em seu livro Consciousness and the Novel (“A Consciência e o Romance”, em tradução livre), de 2004. Lodge argumenta que “a literatura é um registro da consciência humana, o mais rico e mais extenso que temos… O romance é sem dúvidas o esforço mais bem sucedido do homem de descrever a experiência de seres humanos movidos através do tempo e espaço”.
Em certo nível, é a habilidade de espiar os pensamentos das pessoas que dá à literatura seu discernimento. “Nós não sabemos realmente o que o outro está pensando de verdade em momento algum – a consciência é algo muito privado – e em parte vamos para a literatura em suas diversas formas para compensar ou inventar os solipsismos necessários de nossas próprias vidas internas”, diz Lodge à BBC Culture. “A principal razão pela qual lemos literatura é porque ela nós dá a impressão, se é bem-sucedida, de fazer você entender como as pessoas pensam. Nós sabemos o que sentimos e o que pensamos e também o que esperamos e tememos, mas não sabemos muito bem como outras pessoas processam esses sentimentos e observações”.
Como diz Greenblatt, em Hamlet, Shakespeare “aperfeiçoou as formas de representar a interioridade… logo após a morte de Hamnet, expressou a percepção mais profunda de existência de Shakespeare, seu entendimento do que poderia ser dito e o que poderia ficar não dito, sua preferência pelas coisas bagunçadas, quebradas e não resolvidas sobre as coisas bem ordenadas, bem feitas e resolvidas”.
“Ninguém, antes ou desde Shakespeare, criou tantos egos separados”, diz Harold Bloom — Foto: Creative Commons cc-by-sa 3.0
O crítico Harold Bloom chega a dizer que “Shakespeare continuará nos explicando em parte porque ele nos inventou”. Em seu livro Shakespeare: The Invention of the Human (“Shakespeare: A Invenção do Humano”, em tradução livre), publicado em 1998, Bloom argumenta que os personagens da peça “são exemplos extraordinários não apenas de como os significados são iniciados e repetidos, mas também de como novos modos de consciência surgem… Ninguém, antes ou desde Shakespeare, nos dividiu em tantos egos”. Ele diz que sua própria paixão por livros vem do acesso que eles dão à mente dos outros: “Eu sou inocente o bastante para ler incessantemente porque eu não posso, por mim mesmo, conhecer as pessoas profundamente o bastante”.
Modos de ver
Esse impulso pode ir muito além de entender quem somos: ler pode definir nosso entendimento sobre nós mesmos. “Seja Dante quando eu tiver 60 anos ou Alice no País das Maravilhas quando eu era adolescente, essas histórias para mim eram autobiográficas”, diz Alberto Manguel, escritor e diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. “Eu entendi perfeitamente o que Alice sentiu no mundo dos adultos absurdos, onde ela tenta da maneira mais educada que consegue fazer perguntas inteligentes, quando tudo em sua volta parece absurdo. Isso me ajudou a entender o mundo louco em que eu estava – e, mais tarde, quando eu descobri o mundo da política e o Chapeleiro Maluco diz que não há espaço na mesa e Alice aponta que a mesa está feita para várias pessoas e há muito espaço, eu senti que era exatamente isso que eu estava vendo na sociedade, na qual um grupo de pessoas como o Chapeleiro Maluco estavam dizendo às outras que estava passando fome que não havia lugar na mesa”.
Ele insiste que ler deu a ele sentido para suas experiências de vida. “Eu tenho certeza de que se não tivesse lido Alice no País das Maravilhas e Dante eu não entenderia tantos aspectos sobre mim”. Em seu livro Curiosity (“Curiosidade”), Manguel diz que ele poderia não ser capaz de identificar a si mesmo em um procedimento de identificação de suspeito da polícia: “eu não sei se isso é porque meu rosto envelhece muito rapidamente e muito drasticamente ou porque meu próprio ego está menos embasado na minha memória do que nas palavras escritas que decorei”.
A identificação com uma história pode sergir de maneiras inesperadas. O primeiro romance de Preti Taneja We That Are Young (“Nós que Somos Jovens”, em tradução livre) reimagina o Rei Lear na Delhi de hoje. Estudando a peça na escola no Reino Unido, ela sentiu uma conexão profunda que a surpreendeu. “Em Rei Lear, eu reconheci a família indiana extendida que eu costumava visitar todo verão”, ela escreveu. “Shakespeare de alguma forma reconheceu a parte da minha vida que meus amigos ingleses nem imaginavam – a parte indiana, na Índia”.
Rei Lear a ajudou a pensar sobre a Divisão da Índia. “Ninguém falava sobre isso na escola, mas havia essa sensação definitiva que havia uma grande história que precisava ser trazida para este país, esta era a razão pela qual eu havia nascido aqui – e então de repente estava ali, logo em Shakespeare”, diz Taneja à BBC Culture. “Essa história da divisão que leva à guerra civil, essa história de filhas que são forçadas a se comportar bem para a honra da família – que é a situação que muitas imigrantes de segunda geração enfrentam”.
Ao transformar um rei em um pedinte, filhas obedientes em vilãs, uma filha leal em banida no exílio, um filho legítimo em excluído e um ilegítimo em um pertencente ao círculo, o Rei Lear mexe com ideias sobre identidades fixas. “Quase todo personagem é colocado em uma posição oposta a si”, diz Taneja. “Todo mundo é trocado. Essa peça realmente é sobre alienação de si e explorações com o outro dentro de si – como nos reconciliamos com esses dois lados e nos entendemos com o fato de que somos todos seres híbridos e que a sociedade não é algo fixo”.
Bloom falou sobre isso quando disse que “Shakespeare não nos tornará melhor nem pior, mas ele pode permitir que demos ouvidos a nós mesmos quando falamos com nós mesmos… ele pode nos ensinar a aceitar a mudança em nós e nos outros e talvez até a forma final da mudança”. Com personagens que calibram sua imagem com as perspectivas dos outros e então adaptam seu comportamento de acordo, ele acredita que as peças revelam o processo de autorevisão – a habilidade “de mudar ou nos ouvir e então pelo desejo de mudar'”
Luz no escuro
Mas além de se identificar com personagens, nós lemos para descobrir como as pessoas profundamente diferente de nós pensam. “O cânon a que fui apresentado na escola incluía Philip Larkin, JM Coetzee – todos esses homens escrevendo sobre masculinidade e sobre a sociedade com um olhar muito particular”, diz Taneja. “Me pareceu que o que eu estava aprendendo era como eu era vista. Isso é o que os personagens homens estão falando é o que pensam de mim, e sobre o mundo que eu pertenço. Há muitas epifanias nisso – Coetzee é um dos meus escritores prefereidos porque seu trabalho é muito afiado – me ensinou sobre a forma que um certo tipo de masculinidade patriarcal me vê no mundo”.
O storytelling tem um papel evolucionário em provocar empatia. Como Atticus Finch disse em O Sol é Para Todos, “você nunca realmente entende uma pessoa até que você considera as coisas a partir de seu ponto de vista – até que você veste sua pele e anda por aí com ela”.
Ler nos encoraja a não reduzir os outros a caricaturas. “Inconscientemente, começamos a aceitar que o outro é sempre um mistério e que caracterizações fáceis nos levam a lugar nenhum”, diz a escritora grega Amanda Michalopoulou. “A literatura transforma medo amorfo em pena em individualidades. Ela nos diz: o outro não é o que parece”.
A ficção também pode nos colocar em posições desconfortáveis. No evento da BBC Culture Histórias que Mudaram o Mundo, o escritor Colm Tóibín disse que ela deveria “mostrar o diabo para que você o conheça”. No caso de Clytemnestra na Oresteia, ele disse “eu preciso lhe mostrar alguém que já foi bom… quão facilmente ela poderia ser corrompida, que mostro ela poderia se tornar – quando você está praticamente a seguindo quando ela chega para assassinar seu marido Agamemnon, pensando ‘eu quero que você faça isso’ – você está empurrando a imaginação do leitor em áreas em que ele pode não querer ir.
E assim como as histórias demonstram que humanos não são exatamente ‘bons’ nem ‘ruins’, elas também nos lembram quão rapidamente mudamos. “Nossas leituras nunca são absolutas: a literatura não permite tendências dogmáticas”, escreve Manguel. “Em vez disso, mudamos de alianças… se nos reconhemos em Cordelia hoje, podemos chamar Goneril de nossa irmã amanhã e no futuro, um parentesco com Lear, um homem bobo e bondoso. Essa transmigração de almas é o milagre mais discreto da literatura”.
Talvez o mais importante seja que ler pode reafirmar um sentimento que todos temos – que nos diz que quem somos como humanos varia de momento a momento. Em resposta à pergunta feita pela lagarta – “quem é você?” – Alice diz “E-eu mal sei, senhor, no momento. Ao menos eu sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas acho que devo ter mudado várias vezes desde então”.
Fonte: g1.globo.com