Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil
Tanto a nova pesquisa do Insper quanto estudos anteriores concordam em um ponto: não importa a metodologia usada, o patamar de iniquidade brasileiro está entre os mais altos do mundo.
Por isso, muitos estudos investigam as causas da desigualdade no país e das mudanças em sua trajetória. Eles são consideradas cruciais para embasar políticas públicas efetivas de combate ao problema.
“Olhar para mudanças na desigualdade nos permite avaliar as políticas sociais que foram feitas, como a expansão de programas de assistência e do salário mínimo, a regulação do mercado de trabalho e o aumento da escolaridade”, diz a economista Cecília Machado, professora da FGV/EPGE, economista-chefe do Bocom BBM e colunista da Folha.
Mas como saber se as medidas adotadas por diferentes governos têm funcionado quando há dissenso entre os principais pesquisadores sobre a direção na trajetória dos dados?
“O que está em questão é um aspecto relevante da história do Brasil. O diagnóstico sobre o que aconteceu, de fato, com a desigualdade é muito importante”, diz Laura Muller Machado, uma das autoras do novo estudo sobre o tema.
“Qual é a verdadeira história da desigualdade no Brasil? Ela caiu pela primeira vez por um bom período? Ou aumentou?”, complementa Ricardo Paes de Barros.
Além dos dois cenários mencionados por PB, como Paes de Barros é conhecido, há um terceiro, que se baseia nas conclusões de outro conjunto de estudos, segundo os quais houve relativa estabilidade no nível de concentração de renda brasileira nas últimas décadas.
Essa interpretação surgiu a partir do esforço de pesquisadores para aplicar em nações emergentes, como o Brasil, a metodologia que o economista francês Thomas Piketty desenvolveu para aprimorar o cálculo da renda dos mais ricos.
Considerada extremamente útil para objetivos como monitorar o mercado de trabalho, pesquisas domiciliares, como a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, subestimam os rendimentos mais altos.
Isso decorre de diversos fatores. Um deles é a própria compreensão do conceito de renda. Os entrevistados tendem a associá-lo ao salário, omitindo eventuais ganhos com aplicações financeiras. Também é comum que os mais ricos citem, propositalmente, rendimentos menores.
Piketty e seus coautores propuseram corrigir esses vieses reconstruindo as séries de distribuição de renda a partir da adição de outras bases de dados, como informações tributárias.
Seguindo esses passos, em uma análise que combinou informações da Pnad às da Receita Federal, os economistas Marcelo Medeiros, da Universidade Columbia, Pedro Ferreira de Souza, do Ipea, e Fábio Ávila de Castro, da Universidade de Brasília, chegaram a duas conclusões relevantes.
A primeira foi que a desigualdade brasileira era mais alta do que se imaginava até então. A segunda foi que ela não recuou entre 2006 e 2012.
Em 2017, em um estudo orientado por Piketty, o economista Marc Morgan chegou a achados parecidos, usando uma metodologia ainda mais precisa, por incluir dados das contas nacionais, o chamado PIB (Produto Interno Bruto).
“Segundo a teoria, a renda total de todas as pessoas deve coincidir com o valor de toda a produção”, diz o pesquisador Rodolfo Hoffmann, da USP (Universidade de São Paulo).
Por isso, os pesquisadores pinçam nas contas nacionais fatias de renda que estejam faltando após a combinação entre dados tributários e pesquisas domiciliares.
No PIB, é possível identificar, por exemplo, quanto foi recebido por acionistas de empresas sob a forma de dividendos, o montante de juros advindos de aplicações financeiras e o aluguel embolsado por proprietários de imóveis. Esses pedaços foram inseridos por Morgan no cálculo da distribuição de renda brasileira.
O fato de que outras fatias significativas do PIB do país –como os recursos transferidos pelo governo para famílias de baixa renda em programas sociais– ficaram de fora de sua conta era alvo de críticas.
Mas a grande surpresa de economistas que estudam desigualdade foi a publicação de uma atualização dos cálculos de Morgan, no fim do ano passado, que indicavam um forte aumento da concentração de renda brasileira.
“A metodologia é apresentada de maneira bastante sumária. Há diversas correções muito arbitrárias”, diz Hoffmann.
Os pesquisadores do Insper dizem que seu estudo difere do feito por Morgan porque, além de já incluir, de forma detalhada, praticamente todas as rendas das contas nacionais, usa a POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) como base da sua análise, no lugar da Pnad.
“Por ser uma pesquisa de orçamento familiar, os entrevistadores da POF são forçados a tentar achar a fonte de renda de todos os gastos declarados pelos entrevistados”, diz Samir Cury, professor do Insper e um dos autores do estudo.
“Tudo que é pontual, dificilmente é capturado pela Pnad”, completa ele.
Os quatro pesquisadores consideraram como renda o acesso a itens e serviços aos quais os brasileiros têm, mesmo sem pagar por eles.
PB explica que eles partem do conceito de que renda é o consumo máximo que você consegue ter sem reduzir seu patrimônio. Ao aplicá-lo, eles incluíram itens como os citados por Cury, mas também desconsideraram outros que aparecem como rendimento na POF. Um exemplo é o dinheiro aferido com a venda de um carro.
“O esforço deles [os autores] foi pegar a POF, combinar com o IR e as contas nacionais. Olhando a distribuição como um todo por esse lado, houve uma queda [da desigualdade]. Isso destoa da conclusão de Marc [Morgan] e é algo muito importante”, diz Souza”‹, do Ipea, que é autor do livro “Uma História da Desigualdade”.
Souza –que também participará do debate do Insper nesta segunda– ressalta que os achados diferentes não são um problema, pois levam a uma discussão saudável sobre a melhor forma de mensurar a concentração de renda.
“Claramente, as diferenças entre as pesquisas estão nas escolhas metodológicas e a questão é entendermos qual delas será a melhor”, diz.
Ele ressalta que a POF, por exemplo, tem a vantagem de capturar melhor a renda não monetária das famílias, mas a desvantagem de ser feita com muito menos frequência do que a Pnad.
“A gente vai acabar convergindo para um consenso. O importante é estarmos estudando a desigualdade, o que, após a pandemia, se tornou ainda mais importante no Brasil.”
O registro da queda da desigualdade, entre 2002 e 2015, conforme constataram os pesquisadores do Insper, além de mudar a forma de contar a história recente de muitas famílias brasileiras, coloca um peso maior sobre a campanha eleitoral do ano que vem.
O período coincide com boa parte dos governos petistas e, por conta de problemas graves –como inflação, desemprego e queda de renda– atuais, os temas econômicos devem ser fortemente explorados pelos candidatos, inclusive pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que deve tentar voltar ao poder. Érica Fraga, Douglas Gavras e Gustavo Queirolo.
por Folhapress